PAISAGISMO NO SEMIÁRIDO NORDESTINO
O paisagismo é uma arte e técnica multifacetada necessária à evolução da paisagem, segundo a qual a natureza e o homem precisam caminhar juntos nos mais diversos tipos de circunstâncias e regiões. O semiárido é uma delas, que precisa ser compreendida, estudada e explorada, cada vez mais.
O solo, a fauna, a flora, a história, as comunidades, a arquitetura, a jardinagem, a economia e o clima do semiárido devem ser observados de forma holística, unificada, de modo a restabelecer vivências e sentimentos, respeitar sua diversidade, enaltecer suas riquezas, compreender suas energias e mistérios.
Promover o paisagismo numa região com escassez de água e poucos investimentos público-privados não é um caminho sem adversidades, especialmente no semiárido do Nordeste do Brasil. A degradação do meio ambiente, a exclusão social e as contradições são outros fatores negativos para seu desenvolvimento.
Existe a necessidade de que o bioma da caatinga e os demais aspectos do semiárido sejam considerados como elementos determinantes para a construção de um futuro sustentável. Muitos espaços dessas regiões de seca não são explorados em virtude do desconhecimento de seu potencial paisagístico.
Além dos efeitos prejudiciais advindos da concentração populacional nas grandes cidades, pesquisas científicas identificam que o crescimento da temperatura média, a crise hídrica, o desmatamento e a desertificação são realidades preocupantes, que precisam ser verificadas quando da elaboração e execução de projetos.
É importante enfatizar que, inobstante todas as dificuldades, muitos estudos foram apresentados ou se encontram em andamento no Brasil acerca de diversos aspectos do semiárido, o que contribuirá, de forma significativa, para a devida exploração das riquezas da região.
Várias pesquisas da Embrapa, das Universidades e de outras instituições nacionais e internacionais oferecem importantes informações relacionadas a regiões com muitas intempéries, inclusive o semiárido, que precisam ser compiladas e sistematizadas para o estabelecimento de novos usos e manejos dos recursos naturais e tecnológicos.
E é nesse contexto que o paisagismo tem papel fundamental, uma vez que condensa informações de áreas diversas, inspira novas ideias, agrega projetos, capta sensações, promove beleza e estética e, sobretudo, transmuta a vida de muitas pessoas através de mudanças pontuais na consciência individual e coletiva.
A flora e o paisagismo.
No semiárido brasileiro predomina a vegetação da caatinga. Suas espécies são dotadas de forte adaptação às demais intempéries ambientais, com destaque na menor quantidade de folhas, nos troncos esbranquiçados e nas folhas modificadas na forma de espinhos. Estudar suas peculiaridades é indispensável para apresentação de soluções sustentáveis tanto na área rural como nas cidades, uma vez que permite o uso inteligente da água, reduz gastos com manutenção e diminui a frequência de reposição de plantas em razão de sua perenidade (PEREIRA, 2013).
O aspecto ornamental de muitas de suas espécies favorece a exploração dentro de contextos paisagísticos diversificados. Além da inserção de árvores, palmeiras, arbustos, herbáceas, cactos, bromélias e outras plantas xerófitas em espaços públicos e jardins particulares, suas partes podem ser usadas dentro de um amplo universo criativo.
Segundo Lorenzi (2002) nada pode limitar o imaginário do paisagista. Através de elaboração de levantamentos preliminares, estudos de caso, inventário de espécies e zoneamento, ele encontrará inúmeras formas de proporcionar beleza, harmonia, novidade e surpresa.
Além das escolhas de espécies de plantas ornamentais, eis alguns exemplos de práticas paisagísticas interessantes:
· Vasos e arranjos com flores da caatinga;
· Troncos como expressões artísticas ou para moldurar paisagens;
· Frutos e folhas ressecadas como elementos de design;
· Recursos representativos dos jardins secos japoneses (camadas de areia onduladas, inserção de rochas e pedras etc.);
· Cercas de madeira sustentável com design regional ou moderno, nas quais sejam reproduzidas formas aleatórias ou padrões representativos da natureza;
· Muretas com pedras locais;
· Utilização de madeira plástica em substituição à madeira nobre;
· Porteiras ou entradas de propriedades com telhado verde de cactos e suculentas;
· Caminhos, canteiros, bordas ou contornos de tijolos, pedras em mosaico ou dormentes;
· Uso de cores vivas (amarelo ou vermelho) para estabelecimento de pontos focais, a fim de quebrar a aridez do ambiente;
· Instalação de redários em regiões sombreadas;
· Catalogação de espécies nativas com uso de placas indicativas;
· Artes com ferro para delimitação de áreas;
· Formação de espaços externos holísticos ou lúdicos;
· Canteiros circulares para as árvores, com design pensado para a permanência no lugar;
· Pedriscos de pneus para canteiros, caminhos e vasos;
· Jardins sensoriais;
· Enfeites de barro ou madeira tratada;
· Casinhas de passarinho;
· Agrupamento de jardineiras retangulares de madeira para formação de áreas;
· Mesas circulares para área externa em áreas sombreadas;
· Cadeiras de balanço de design nas árvores;
· Esculturas modernas ou de natureza regional;
· Vasos de cerâmica médios ou grandes com plantas ornamentais como pontos focais;
· Iluminação com luz amarela4 nos caminhos ou trilhas, a fim de gerar sensação de tranquilidade e serenidade no ambiente externo;
· Aproveitamento de peças de madeira dentro de um contexto artístico ou regional;
· Cinema ao ar livre;
· Museu de memória familiar;
· Canteiros de espécies floríferas (girassóis, cártamo etc.);
· Formação de maciços (plantas de uma única cor e espécie) maiores e contínuos, que se harmonizem;
· Jogo de texturas no solo, estabelecendo-se áreas de transição ou de deslocamento.
FIGURA 1: Cártamo no Semiárido
FIGURA 2: Girassol no Semiárido Paraibano.
Muitos estudos, especialmente da EMBRAPA, identificaram que a riqueza e a diversidade da flora da Caatinga podem ser reconhecidas sob o aspecto paisagístico. Identificar essas possibilidades de forma objetiva é uma solução interessante para o desenvolvimento da região. Nesse sentido, KIILL (2013) oferece muitas perspectivas paisagísticas, entre as quais destaca:
a) Uso de jogo de cores, com destaque no branco discreto da Jurema (Mimosa spp), no azul delicado da Flor-do-céu (Evolvulus cordatus Moric.), no lilás sofisticado da Camaratuba (Cratylia mollis Mart. ex Benth), no vermelho intrigante do Mulungu (Erythrina velutina Wild.), no amarelo cativante das Sete- cascas (Tabebuia spongiosa) e Craibeiras [Tabebuia aurea (Silva Manso) Benth. & Hook. f. ex S. Moore] e, por fim, no verde insistente dos Juazeiros (Ziziphus joazeiro Mart.);
b) O poder curativo da Aroeira (Myracrodruon urundeuva Allemão), Umburana-de-cheiro [Amburana cearenses (Allemão) A. C. Sm.]
KILL (2013) destaca mais um estudo sobre as flores da caatinga do Instituto Nacional de Semiárido, que aborda as grandes transformações decorrentes das primeiras chuvas na Caatinga, entre outros valiosos detalhes. Através dessa pesquisa, evidenciam-se os seguintes aspectos ornamentais:
· O tapete herbáceo na cor amarela gerado pela Azedinha (Oxalis divaricata) no período chuvoso;
· A imponência e as lindas flores brancas da árvore Barriguda (Ceiba glaziovii); o rosa-claro das pétalas da Cebola-brava (Habranthus itaobinus);
· A elegância e os aromas do Cumaru (Amburana cearensis), também conhecido como Imburana-de-cheiro;
· O florescimento exuberante do Fedegoso-do-mato (Senna silvestris);
· O vigor e a cor violeta das flores do cipó Mucunã (Dioclea grandiflora);
· A multifuncionalidade e beleza do Pau-Branco (Cordia oncocalyx);
· A majestade e o poder curativo do Ipê-roxo (Handroanthus impetiginosus);
· E por fim, a expressividade e rusticidade do Umari-bravo (Calliandra spinosa), que é muito usado para o Bonsai.
O Guia de Plantas Visitadas por Abelhas na Caatinga é uma fonte de pesquisa interessante para os profissionais que trabalham com jardinagem e paisagismo no semiárido. Já foram catalogadas 187 espécies de abelhas, com destaque nas abelhas sociais sem ferrão (jandaíra, irapuã, munduri, jati etc.). Como é de notório conhecimento, elas são essenciais para polinização e preservação de ecossistemas. Algumas espécies de plantas, além de atrair as abelhas, podem ser usadas no paisagismo tendo em vista alguns de seus aspectos ornamentais. Eis alguns exemplos: as flores amarelas e grandes do Pacoté [Cochlospermum vitifolium (Wild.) Spreng]; a copa exuberante e o tronco com cor avermelhada da Imburana [Commiphora leptophloeos (Mart.) J.B. Gillett]; as inflorescências do Mofumbo (Combretum leprosum Mart); o crescimento rápido e a grande tolerância à seca da Faveleira (Cnidoscolus quercifolius Pohl); a copa grande e a bela floração do Pau-ferro [Libidibia ferrea (Mart. ex Tul.) L.P.Queiroz]; a floração muito vistosa do Pau-mocó [Luetzelburgia auriculata (Allemão) Ducke] (SILVA et al. 2012).
Corroborando com Silva (2012, p. 170):
A estrutura de "tanque" das bromélias do gênero Aechmea contribui, de acordo com o estudo de Tássia, para o armazenamento da água, o que, além de gerar um aspecto ornamental importante, pode favorecer a presença de animais na região, especialmente na época de estiagem. Outras espécies ornamentais podem ser empregadas no paisagismo no semiárido: Agaves (Família: Agavaceae); Tamboril (Enterolobium contortisiliquum); Brasileirinho (Erythrina indica picta); Acácia (Cassia siamea L.); Bisnagueira (Spathodea campanulata); Babosa (Aloe arborescens); Rosa do Deserto (Adenium Obesum); Rosinha-de-sol (Aptenia cordifolia); Pata de Vaca (Bauhinia forficata); Jericó ou Planta da Ressurreição (Selaginella convoluta); Jenipapo (Genipa americana); Pereiro (Aspidosperma pyrifolium); Licuzieiro (Syagrus coronata); Carnaúba (Copernicia prunifera); Cabaça (Lagenaria siceraria); Alamanda Puberula (Allamanda puberula); Moleque-duro (Cordia leucocephala); Canafístula (Cassia fistula); e Macambira (Bromelia laciniosa).
São diversos os estudos publicados da comunidade acadêmica sobre plantas do semiárido brasileiro, que podem ser utilizados para o estabelecimento de aspectos ornamentais dentro de um contexto atual e sustentável.
O paisagista precisa compreender, por exemplo, a capacidade de armazenamento de água nas raízes (xilopódios), os usos estéticos dos frutos e a forma da copa do umbuzeiro (Spondias tuberosa), a “árvore sagrada do sertão” do escritor Euclides da Cunha, conforme mencionou em seu livro “Os Sertões” (CUNHA, 1984).
A composição paisagística deve ser bem elaborada, a fim de evitar má interpretação e descontentamento. É preciso que o projetista tenha em mente que, além de valorizar as riquezas locais e evitar o desperdício de água, precisa incorporar conceitos de design, que, de forma harmônica, possam gerar impacto visual. Detalhes estéticos superficiais, mera reprodução de paisagens e ausência de planejamento de espaços diversificados e contínuos são erros comuns, que desvalorizam as intervenções do paisagista. O sustentável e o funcional devem ceder espaço à criatividade contemporânea, que prime pelo uso de diversos materiais e recursos das artes plásticas e visuais, o que contribuirá para formação de novas identidades (CUNHA, 1984).
Estudos, pesquisas, métodos e técnicas atuais acerca de implantação e manutenção.
Eis algumas soluções paisagísticas que podem garantir a eficácia de paisagens criadas: criação de ilhas artificiais, mediante prévio zoneamento da área; ordenação de flora por necessidade hídrica; construção de "jardins em rochas"; aplicação de técnicas específicas de jardinagem nas fases de execução e manutenção de jardins; emprego de sistema de geração de energia heliotérmica; uso de quebra-ventos e coberturas orgânicas (camadas de palha, lascas de madeira, serragem ou folhas de palmeiras) ou inorgânicas que evitem o ressecamento do solo; o coroamento; plantio de árvores para fornecer sombras para outras plantas ou uso de sombras artificiais (anteparos, pérgolas etc.) com a mesma finalidade; desenvolvimento de captação de água mediante estratégias permaculturais; uso de cisternas; instalação de sistema irrigação por gotejamento, especialmente em áreas que facilitem a manutenção nos casos de furos ou entupimentos; emprego de recursos luminotécnicos que prezem pela economia de energia e evitem o esquentamento ou a morte de plantas (MEIRA, 2017).
Outra forma de obter êxito no paisagismo é o simples ato de observação contínua dos sinais da natureza. Através da análise comportamental das plantas, animais e dos ciclos climáticos, tal como já é realizado por muitos agricultores locais, ficam otimizados os processos de tomada de decisões.
FIGURA 3: Jardim de Pedras do Instituto Inhotim
Um bom exemplo de paisagismo e de emprego correto de técnicas de xerojardinagem é o Jardim de Pedras do Instituto Inhotim da cidade de Brumadinho/MG, no qual foram usados exemplares originários de regiões desérticas e também do semiárido do Brasil. No Jardim Botânico do Rio de Janeiro, também existe um belo espaço dedicado ao assunto. Em Recife, há a Praça Euclides da Cunha, cujo projeto de paisagismo foi concebido por Burle Marx em 1935. Nesse último espaço público, Burle Marx inseriu, de forma inovadora, diversas espécies vegetais da Caatinga, como a coroa-de-frade (Melocactus zehntneri), o facheiro (Pilosocereus pachycladus), xique-xique (Pilocereus gounellei), pau-ferro (Caesalpinia leiostachya), pau-d'arco (Tabebuia impetiginosa) e o juazeiro (Zizyphus joazeiro) (CARNEIRO, 2009).
FIGURA 4: Jardim de Cactus de Lanzarote
FIGURA 5: Jardim Exótico de Eze (Sul da França)
Outros exemplos de referência mundial de sustentabilidade e beleza são: o Jardim de Cactos de Lanzarote da Ilha das Canárias; o Jardim Exótico de Eze do Sul da França; o Cactus Country na Austrália; e o Jardim Botânico de Phoenix no deserto de Arizona dos EUA. Todos esses projetos trazem formas interessantes de explorar o paisagismo de forma turística e pedagógica.
Considerações finais.
O paisagista necessita revisar seus parâmetros de projetar. É importante que faça uma reflexão voltada à sustentabilidade dentro de novos conceitos. Usar as peculiaridades do semiárido juntamente com práticas modernas de composição, jardinagem e design é uma excelente forma de obter sucesso.
Não faltam bons exemplos para trazer beleza e perenidade aos jardins atuais. A liberdade do paisagista não deve sofrer limitações de qualquer gênero, salvo aquelas que assegurem os cumprimentos de normas de natureza técnica, especialmente voltadas à segurança, acessibilidade e sustentabilidade.
Foram identificados aqui apenas alguns estudos e informações para auxiliar nessa jornada. O campo de investigação é vasto. E a intenção não é esgotar o assunto aqui. E sim, despertar a curiosidade, ampliar horizontes e promover uma abertura da consciência criativa.
É preciso que seja reconhecido que o conhecimento e sentimento do paisagista tornam-se úteis nesse contexto. Sua visão ampla sobre a importância do meio ambiente é um recurso indispensável para aqueles que desejam mudanças úteis, belas e harmônicas na paisagem.
Explorar a aridez das paisagens é uma oportunidade de aprendizado, um acordo com todos os demais seres, que pode nos ensinar a integração em diversos níveis. Novos caminhos, vistas, formas e ideias mesclam-se para formação de um terreno fértil, em que o potencial humano é impelido a ser aliado da natureza, que, em retribuição, poderá permitir que se germine o exemplo multiplicador.
O semiárido é uma região cheia de contradições, e também repleta de luz. Sua presença é símbolo de força e sabedoria. Nela, os ideais da sobrevivência e da maturidade invadem a alma humana, que necessita contemplar todas as esferas da existência. A prática do paisagismo nesse contexto é um chamado à transformação, que se faz necessária à nossa escalada evolutiva nesse planeta.
Ao se captar as expressões da biodiversidade de um lugar, podem ser gerados novos sentimentos positivos: intimidade, contentamento e gratidão. Na Caatinga, não é diferente. Ao contrário, podem ser mais intensos, a ponto de formarem uma relação sagrada e até misteriosa, como expressão de puro respeito e amor. Quando se procura conhecer em profundidade, entra-se em comunhão, um inesgotável sentimento de pertencimento mútuo.
A inspiração do paisagista é sempre uma semente, que brota até nas regiões mais áridas. A raiz, o caule, os galhos e as folhas serão daqueles que acreditam em que tudo se forma quando o coração fervilha, a fé acalenta e a mente adorna. Cabe à Mãe Natureza permitir, quando então, finalmente, os frutos serão colhidos por todos, e um novo ciclo inicia-se.
REFERÊNCIAS
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984.
KIILL, L.H.P., Haji, F.N.P. & Lima, P.C.F. 2000. Visitantes florais de plantas invasoras de áreas com fruteiras irrigadas. Scientia Agricola, 57: 575-580.
KIILL, Lucia Helena Piedade, TERAO, Daniel, ALVAREZ, Ivan André. Plantas Ornamentais da Caatinga. Brasília: EMBRAPA, 2013.
INSA. Flores da caatinga. Instituto Nacional do Semiárido, 2010.
MEIRA, Manoel Messias Coutinho. A Beleza Seca: Aspectos do Paisagismo no Semiárido Brasileiro. Brasilia. 2017.
PEREIRA, Tassia T. P. Bromélias Tanque Favorecem a Riqueza de Fauna no Semiárido. Belo Horizonte, 2013.
SILVA, Camila Maia. Guia de Plantas: Visitadas por abelhas na Caatinga.Fortaleza, CE. Ed. Fundação Brasil, 2012.
Umbuzeiro: avanços e perspectivas / editores técnicos Marcos Antonio Drumond... [et al.]. – Petrolina: Embrapa Semiárido, 2016.
Observação importante: essas informações foram retiradas de artigo de autoria do paisagista César Barros Leal Filho, que foi apresentado em sua Pós-graduação em Paisagismo.
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